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Tio Ricardo vai colocar um stent

 

Este é mais um dos episódios da saga “No ônibus do condomínio”.

É verdade que hoje, após tantos anos, já me sinto um pouco em casa quando ponho os pés no “busão”. Os motoristas me são familiares e também alguns passageiros que têm os horários parecidos com os meus. Via de regra, o ar condicionado é possante. Gélido. Quase o Polo Norte. Os incautos que saiam de casa sem levar um agasalho na bolsa ou sobre os ombros. Não eu, que de tão prevenida cheguei a usar o lenço protetor térmico como balão de oxigênio.

Esse é o lado bom da intimidade com o transporte e as pessoas que o usam. Entretanto, como em quase tudo na vida, o uso vira abuso num piscar de olhos. Quem se utiliza de transporte coletivo sabe que nem todos têm a consciência de onde termina seu direito e começa o do próximo. E na comunidade selecionada e motorizada a que pertenço, ao menos por três horas diárias, não poderia ser diferente.

É claro que já usei o celular dentro do ônibus, atendi ligações e marquei hora no salão de beleza. Mas procuro ser rápida e falar baixo. Gosto mesmo é de aproveitar aquele período para relaxar, ouvindo música, vendo filmes ou até escutando uma história contada por meio dos audiobooks, que cada vez mais se proliferam, para deleite dos deficientes visuais e daqueles que passam boa parte de seus dias confinados na trajetória de ida e vinda do trabalho.

Pena que nem todo mundo pense assim e, em vez de atividades barulhentas para dentro dos fones de ouvido e silenciosas para fora deles, resolvam se sentir em casa como se estivessem sozinhos. Helloooo? Tem no mínimo mais quarenta pessoas compartilhando o microespaço com você e normalmente não são surdas.

Bem, são muitos os perfis dos falantes, gritantes e gargalhantes compulsivos. Contudo, agora, vou me ater a uma figura só. A sobrinha de Ricardo.

Depois de me acomodar numa das janelas das fileiras da frente, segui meu ritual. Ajeitei as bolsas, procurei uma barrinha de cereais para fazer um minilanche que não espalha farelos e peguei meu amigo inseparável: o Ipod.

Ao meu lado se sentou uma mulher jovem que, antes mesmo de se arrumar confortavelmente para a viagem, sacou um celular e começou uma corrida frenética com seus dedos nervosos pela agenda para localizar algum parente que ainda não soubesse das mais recentes notícias sobre o estado de saúde de seu tio.

Quando do outro lado da linha a pessoa já sabia, ela descartava meio decepcionada, sem perder tempo, e retomava a missão.

Obviamente me sensibilizei com o fato de uma sobrinha estar eufórica com as boas novas sobre um ente querido. Amei muito meus tios e sinto imensa saudade dos que se foram. Só restava um em Portugal quando escrevi este artigo. Agora, perdi todos.

Porém, em verdade, todo o entusiasmo e satisfação estavam ligados ao diagnóstico médico: o Tio Ricardo teria que se submeter a uma cirurgia cardíaca para colocação de um stent na semana seguinte e até lá ficaria em repouso absoluto à base de remédios fortíssimos. Não é maravilhoso?

Não sou um monstro. Evidente que ela esperava um quadro pior e aquela situação lhe pareceu um alento, provocando um alívio incontido.

Um dos telefonemas foi para a filha do paciente. Pelo tom de voz da “jornalista”, que tinha no sangue o desejo pulsante de passar informações quentes em primeiríssima mão, a prima não estava tão esfuziante do outro lado da linha.

Implacável, a personagem central desta história relatou que a voz dos pais da prima estava ótima e que o próprio tio, pai da outra interlocutora e festejado paciente, havia dito que faria o pré-operatório à base de uísque.

Houve um momento, lá pelas tantas do longo caminho, em que ela exclamou como se tivesse tido um “insight”:

– Gente, acho que o ônibus todo já sabe do Tio Ricardo. Eu me empolguei!

De certo, todos e cada um dos combalidos passageiros sabiam detalhes do último boletim médico de seu tio. Mas eu, sentada na poltrona colada à dela, tinha ido mais além: já havia decorado, memorizado, incorporado.

Em momento posterior, a informante especial aconselhava a prima a não deixar a avó delas, provavelmente mãe de Ricardo, ir ao hospital no dia “D”.

Isso me fez refletir sobre a posição dos idosos no seio familiar. Se de um lado os mais velhos são mais sensíveis, facilmente impressionáveis e vira-e-mexe dão trabalho, ali queriam alijar a mãe de um evento crucial na vida do filho. Espero que tenham encontrado uma solução intermediária, nem tão prática nem tão radical.

Ao chegar em casa, numa espécie de hipnose, não resisti à tentação e adivinhem? Contei correndo:

– Sabia que o Tio Ricardo vai colocar um stent?

Como resposta, acompanhada de um olhar cheio de dúvidas, ouvi:

– Mas quem é Tio Ricardo?

Meu Deus, isso é que dá não andar no ônibus do condomínio e não ler a revista Caras. Não se sabe de nada importante.

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